O Ministério Público Estadual apura a suspeita de crimes motivados por rixa entre bolivianos, paraguaios e peruanos em São Paulo. O procedimento foi instaurado pelo promotor Marcelo Rovere após ele ter conhecimento de que estão ocorrendo homicídios, latrocínios, assaltos e brigas entre imigrantes das comunidades na região central da capital paulista. Imagens gravadas por câmeras de segurança e cinegrafistas amadores obtidas pelo
G1 mostram alguns desses enfrentamentos nos redutos latinos.
De janeiro a julho deste ano, a Polícia Militar diz ter atendido 71 ocorrências envolvendo cidadãos da Bolívia, Paraguai e Peru. Durante esse período, um estrangeiro foi assassinado e ocorreram 34 roubos e 36 casos de lesões corporais. Os ataques ocorrem geralmente à noite em bairros do Canindé, Brás e Pari.
Apesar de a PM admitir que ocorrem “perturbações” na região, a maioria dos casos não é registrada pelas vítimas nas delegacias. Levantamento feito pelo
G1 mostra que, de novembro de 2010 até o mês passado, somente sete de dez conflitos entre os três povos foram investigados. No período foram assassinados sete estrangeiros - cinco bolivianos, um paraguaio e um peruano. Outros 15 ficaram feridos. A compilação dos dados leva em conta registros oficiais e subnotificações relatadas por testemunhas.
“Recebi outras informações sobre vários ataques envolvendo paraguaios e bolivianos. São dezenas de casos que aconteceram a partir de 2010, em menos de um ano, demonstrando que alguma coisa de grave está existindo naquela região envolvendo os bolivianos e os paraguaios”, afirma o promotor Rovere.
A Promotoria também quer se reunir com a Polícia Militar e com os consulados dos três países. “Para providências imediatas a fim de evitar que outros casos de violência aconteçam naquela região, de modo que haja um policiamento mais ostensivo e uma comunicação mais efetiva dos consulados com os seus nacionais. A partir daí vamos reunir todos esses casos que estão sendo apurados pela polícia para chegarmos aos culpados e puni-los”, diz Rovere.
Durante as gravações das cenas de agressões, nenhum carro da polícia aparece. Ninguém também telefona para o 190 da PM. O capitão Cleodato Moisés Nascimento, porta voz da Polícia Militar, afirma que paraguaios, bolivianos e peruanos estão concentrados nas regiões do Canindé, Pari e em parte do Brás. “A Polícia Militar tem conhecimento de onde essas comunidades se concentram. Queremos deixar bem claro que não existem grupos formados. São desentendimentos como quaisquer outras comunidades da cidade”, diz.
Garrafada na cabeçaNuma das gravações, um grupo de paraguaios agride um boliviano com uma garrafada na cabeça. Eles tentavam roubar uma sacola com marmitas. O flagrante ocorreu às 22h55 do dia 11 de julho, um sábado, na Avenida Carlos de Campos, no Pari, mas a vítima não chamou a polícia nem sequer registrou a ocorrência na delegacia mais próxima, o 12º Distrito Policial (Pari), a duas quadras do local. A região desse ataque concentra bolivianos numa casa noturna da via e paraguaios do outro, perto de uma lanchonete.
Mais atos de violência foram registrados por câmeras nos dias 23 e 24 de julho, um fim de semana, na Rua Coimbra, no Brás, principal reduto boliviano na capital paulista. São paraguaios batendo em dois bolivianos às 23h de sábado, segundo quem fez as filmagens. Também há informações de conflitos entre jovens da mesma nacionalidade e até de brasileiros que agridem bolivianos. Em outra cena, oito deles batem no imigrante.
Os confrontos ocorrem sempre aos finais de semana e à noite, próximos de baladas frequentadas pelos imigrantes. Geralmente, agressores e vítimas estão embriagados ou drogados. O consumo de bebidas ocorre em bares e nas ruas. As discussões começam em boates e danceterias que tocam cumbia, salsa e merengue, e alcançam calçadas e praças.
Na maioria das vezes, as desavenças históricas do passado entre bolivianos, paraguaios e peruanos são pano de fundo para disputas por vagas no mercado de trabalho, pequenos roubos, bebedeiras e até discussões por causa de mulheres. As armas mais usadas nas brigas são facas.
Bolivianos esfaqueadosRecentemente, um desses crimes chegou ao conhecimento da polícia e ganhou destaque na imprensa. Em 17 de julho, um domingo, o alfaiate boliviano Wilfredo Rodrigues Chambi, de 26 anos, foi morto a facadas por um grupo de paraguaios que comemoravam a vitória da seleção de futebol de seu país contra o Brasil pela Copa América. O crime ocorreu por volta das 22h10 na Avenida Carlos de Campos. A vítima tinha saído de uma casa noturna boliviana com dois amigos, atravessado a rua e ido a uma lanchonete, onde estavam os paraguaios.
Chambi saiu do estabelecimento comercial na companhia do primo, um boliviano, e de um amigo brasileiro filho de bolivianos. Em seguida, os três foram atacados e esfaqueados pelas costas pelo grupo de paraguaios.
“Estava indo embora com meus amigos na rua. Acabaram nos esfaqueando pelas costas e roubaram meus amigos. Um acabou falecendo, outro foi ferido e está internado e eu fiquei desse jeito”, conta o jovem de 19 anos, filho de bolivianos, ao mostrar as cicatrizes. Ele foi um dos dois sobreviventes do ataque - levou oito facadas. "É por causa da cultura, inveja de trabalho. Eram cinco paraguaios [que nos atacaram].”
Um costureiro paraguaio de 20 anos foi preso em flagrante, suspeito por envolvimento no crime. Em depoimento à polícia, ele confessou ter esfaqueado um dos bolivianos. O
G1 não conseguiu localizar o advogado dele para falar do assunto. Os outros quatro paraguaios são procurados pelo Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil.
Rixa“Até o presente momento, percebo que há, sim, uma rixa entre as duas etnias. Isso está comprovado. Vários depoimentos, principalmente de bolivianos, dão conta de que os paraguaios se julgam uma raça superior, branca, e brincam muito, tiram muito sarro, procuram agredir gratuitamente os bolivianos”, afirma a delegada Fabiana Sarmento de Sena, titular da equipe C Leste do DHPP. “Tenho constatado que têm se formado grupos, espécies de gangues, tanto de um lado quanto do outro. Uns para atacar e outros, sobre propósito de se defenderem, também acabam atacando.”
A investigação policial concluiu que os bolivianos são as vítimas preferidas de assaltantes paraguaios pelo fato de serem culturalmente pacíficos, não terem hábito de reagir e não costumarem registrar queixas.
Para o promotor Marcelo Rovere, há muitos indícios de que Chambi tenha sido morto por engano no lugar de um boliviano que arranjou confusão com paraguaios um dia antes. “Parece que há um envolvimento do principal suspeito com o irmão da vítima, demonstrando já uma rivalidade mais antiga entre essas pessoas.”
Parentes do boliviano assassinado confirmaram ao
G1 que um dos sobreviventes estava jurado de morte pelos paraguaios. As declarações foram dadas pela mãe e por dois irmãos de uma das vítimas.
Barrados no bailePelo levantamento do
G1, a Rua Coimbra é a mais violenta, com 12 casos de brigas e quatro mortes envolvendo imigrantes latinos. Depois surge a Avenida Carlos de Campos, com quatro casos de briga e dois assassinatos. A Alameda Barão de Piracicaba, na Luz, teve um caso que resultou em morte.
Após o homicídio de Chambi, a lanchonete Novo Azul, na Avenida Carlos de Campos, onde estavam concentrados os paraguaios que atacaram os boliviano em 17 de julho, diz ter deixado de vender bebidas alcoólicas para grupos de estrangeiros. “A gente não deixa entrar no estabelecimento comercial porque sempre tem briga nos finais de semana nas ruas”, afirma Edson Martins dos Santos, de 44 anos, gerente da lanchonete, considerada reduto de paraguaios. “O problema é na rua, não dentro do bar.”
Para evitar mais confusões, algumas casas noturnas destinadas ao público boliviano passaram a proibir a entrada de paraguaios e peruanos. Seguranças fazem a seleção a partir das características físicas.
“A gente proíbe a entrada de paraguaios e peruanos para evitar brigas. Aqui dentro tomamos medidas de segurança - fazemos revistas, temos três seguranças e oito câmeras”, dizem os bolivianos Marco Antonio Ramos, de 28 anos, e Gustavo Alejo Alcon, de 30 anos. Eles são gerentes do Trop Mix, boate tida como reduto de bolivianos na Avenida Carlos de Campos.
A onda de violência também está assustando os moradores e comerciantes da Rua Coimbra, que evitam andar nas ruas e fecham os estabelecimentos logo que anoitece. “Antigamente fechávamos às 22h, mas agora descemos as portas às 18h por causa das brigas. Elas estão atrapalhando o comércio”, diz o cabeleireiro boliviano Raul Heriberto Uria Aguirre, de 35 anos.
Os estudantes bolivianos Teodoro Cali, 24 anos, Armando Bajeras, 18 anos, e Julio torres, 21 anos, afirmaram que evitam sair à noite. “A sugestão é fechar bares e colocar mais policiamento”, diz Torres.
O boliviano Jorge Meruvia, de 49 anos, presidente da Associação de Comerciantes da Rua Coimbra, no Brás, diz que as brigas entre estrangeiros ocorrem sempre ao lado das casas noturnas “A bebida emburrece a gente. Quem bebe acha que é um Rocky Balboa [personagem do ator Sylvester Stallone na série de filmes sobre um boxeador nos Estados Unidos]. Queremos que fiscalizem as discotecas ou as fechem.”
O comerciante peruano Richard Herrara Quiza, de 27 anos, e a boliviana Maria Merma Quispe, de 20 anos, são avessos à rivalidade entre os povos. Casados, eles afirmam, no entanto, que as boates atraem brigas. “Quem está na rua bebendo ou dançando costuma apanhar. Quando não buscam problemas, eles não aparecem”, diz Quiza.
Donos de boates ouvidos pelo
G1 são contrários ao fechamento das casas noturnas. Para eles, um policiamento mais ostensivo é capaz de reduzir a criminalidade na região. A violência é tamanha que vitimou até o proprietário de um bar.
“Desde que fui atacado por um peruano dentro da minha própria danceteria, em 2 de julho, penso em deixar de trabalhar à noite por conta dessas rixas. Muitas pessoas ficam na porta do meu comércio bebendo porque tem gente que vende bebidas na rua”, diz o dono de uma danceteria, na Rua Coimbra. Ele pediu para não divulgar nem o seu nome nem o do estabelecimento comercial por temer represálias do peruano que teve o braço cortado por uma garrafa quebrada. “Tentei defender meu pai e o agressor me atingiu. Apesar disso, não fiz boletim de ocorrência. Não adianta.”
Como as vítimas relutam em prestar queixa, o número de confusões pode ser ainda maior, segundo a polícia. O silêncio dos imigrantes se deve, em parte, à situação irregular das vítimas no Brasil e também por falta de conhecimento sobre seus direitos. O registro é necessário para iniciar a apuração de um crime e elaborar políticas de segurança pública, como rondas ostensivas nas regiões com maior índice de criminalidade.
“A Polícia Militar está nas ruas para dar pronto atendimento e resposta rápida. Necessitamos que essas pessoas se aproximem mais da polícia, tragam os problemas que existam por ali”, diz o capitão da PM Moisés do Nascimento.
“Estamos fazendo abordagens. Desde março tivemos três casos envolvendo brigas entre imigrantes. Uma pessoa foi esfaqueada e o autor é desconhecido, não sabemos a nacionalidade. Não existem informações de brigas envolvendo gangues. Se as vítimas não registram queixa, não sabemos o que está ocorrendo”, diz o delegado titular do 8º DP, no Brás, Antonio Tadeu Rossi Cunha. “Mas estamos alertas e checando qualquer informação de brigas.”
Eder Pereira e Silva, delegado titular do 12º DP, também afirma que não há registros oficiais de rixa entre gangues de imigrantes na região. Apesar disso, ele afirma que está investigando a suspeita por conta de comentários que seus policiais escutam no Pari.
Abaixo-assinado“Estamos fazendo abaixo-assinado para pedir mais segurança às autoridades nos redutos bolivianos. Ouço que estão tendo brigas por causa de discriminação e preconceito entre os povos latinos”, diz a boliviana Karen Verônica Morales, de 32 anos, vice-presidente da Associação de Residentes Bolivianos (ADRB). “As assinaturas estão sendo colhidas na Praça Kantuta, no Canindé, um reduto tipicamente boliviano.”
O padre brasileiro Mario Geremia, coordenador da Pastoral do Migrante e da Igreja dos Latinos, diz que está cansado de rezar em velórios e enterros de imigrantes mortos por causa de brigas. “Já fiz alguns enterros de bolivianos. São grupos que marcam território, como outros grupos de intolerância. Pelo menos na missa todos ficam juntos, mas na rua, brigam. Este ano está difícil, muito violento. A Avenida Carlos de Campos e a Rua Coimbra são antros de problemas”, diz o padre.
A artesã peruana Kelly Valdivia Velasquez, de 27 anos, diz que as brigas na ruas de São Paulo são fruto de uma "guerra cultural entre os povos latinos". “Um amigo de bolivianos falou que já foi esfaqueado por um paraguaio. Ele disse que é porque paraguaio costuma falar que boliviano é um povo inferior”, diz ela, que é católica e frequenta a Igreja Nossa Senhora da Paz, considerada a igreja dos latinos na cidade.
O
G1 foi até a Rua dos Italianos, no Bom Retiro, um dos redutos paraguaios em São Paulo, para saber o que eles dizem sobre as brigas com bolivianos e peruanos. “Mulheres e bebida são o que mais dão briga entre paraguaios e bolivianos. A mulher boliviana prefere o paraguaio e isso irrita os bolivianos, que também agridem”, disse o costureiro paraguaio Luis Billordo, de 19 anos.
“Morei no Brás e um boliviano esfaqueou e matou um amigo meu paraguaio há um ano”, diz o costureiro paraguaio Chrystián Florentin, de 22 anos.
Vivem na capital paulista cerca de 300 mil bolivianos, 18 mil paraguaios e 5 mil peruanos, segundo dados dos respectivos consulados. A maioria dessas pessoas ainda busca a regularização para continuar a viver e trabalhar no Brasil.
BolíviaO cônsul-geral boliviano, Jaime Pedro Valdivia Almanza, confirma que as brigas entre imigrantes existe e reforça o fato de que os bolivianos são as maiores vítimas. “Isso tudo pode ser prevenido através de uma polícia intensiva, de uma polícia preventiva. Estamos fazendo esse trabalho de conscientização [da necessidade das vítimas em registrar boletim de ocorrência]. Então temos que unir todas as forças e que possamos avançar para prevenir essa situação”, afirma Almanza.
ParaguaiA cônsul paraguaia, María Amalia Barboza, também não desdenha do problema. “Temos informações de que, sim, houve brigas entre latino-americanos, mas não temos uma notícia oficial de que eram paraguaios. Mas eu acho que eles estavam dentro desse grupo. Sabemos disso pela imprensa”, diz a cônsul. “Não tem que haver essas brigas entre latino-americanos porque somos irmãos.”
PeruO Consulado do Peru em São Paulo diz que desconhece as brigas entre membros das comunidades boliviana, paraguaia e peruana que moram na capital paulista. “Em todo caso, ante tais fatos, não cabe senão a condenação e a rejeição dos mesmos. O que o Consulado Geral do Peru deseja ressaltar é que estes fatos, se forem confirmados, são atribuídos a pessoas marginais, que de nenhuma maneira representam as comunidades boliviana, paraguaia ou peruana em São Paulo”, afirma Eduardo Pérez del Solar, cônsul-geral adjunto do Peru.
HistóriaA professora de história da América Independente do Departamento de História da USP Grabriela Pellegrino Soares diz que algumas dessas desavenças podem ter raízes no passado.
“Essas rixas entre países vizinhos foi maior em tempos de guerra, mas, certamente, nada que justifique esse tipo de confronto. Bolívia e Paraguai entraram em conflito na Guerra do Chaco [de 1931 a 1935] e a Bolívia e Peru haviam perdido para o Chile a Guerra do Pacífico [1879 e 1884]. Conflitos históricos do passado não justificam esse tipo de visão. Mas sendo vulneráveis, as pessoas se agarram aos preconceitos e à construção de identidade. Essas rixas não são viscerais”, diz Gabriela.